quarta-feira, junho 14, 2006

Ontem

mais precisamente de madrugada
tive um sonho como um fotograma
vi um poema do começo ao meio e fim
completar-se diante de meus olhos adormecidos e atentos
instantâneos de simultaneidades
era um poema acabado inteiro fantástico
montagem de inversões conceituais inusitadas
armando o belo paradoxo que o fechava
tão inesperado quanto simples e correta a sua linguagem
sonhei depois que me acordara
do sonho do poema
quase nada retinha na memória
que sonhada
fugia de esquecer-se estranha num cubículo
mesmo assim tive a vaga
impressão de que no texto corria
a mobilidade dos corpos na terra
o giro da terra no tempo
o tempo fluindo estático no poema
tudo pouco claro e sugerido muito mais mostrado do que dito
não sei por que sinal ali implícito
lembrou-me o nome Galileu para o seu título
tinha entretanto perdido o achado
abatido pela fuga do poema sonhei que adormeci novamente

e novamente sonhei com o poema
nele havia agora uns motivos de juventude e outros encantamentos
sociais
que não estavam - segundo o sonho - no primeiro
dessa vez fui mais profissional nas diligências da ilusão
sonhei que ao despertar fui procurar um lápis e umas pílulas
na falta de papel contentei-me com umas etiquetas de supermercado
picotadas e pequenas como selos escuras e sem brancos
aí anotei o poema que não me escapou nem sequer pelas vírgulas

adormeci feliz tendo ao lado da cama sobre o criado-mudo
o troféu de meus combates com o sono com as formas com a noite com os temas
lá estava enfim domesticado e vivo o poema dos meus sonhos

de manhã quando acordei tinha esquecido todos os poemas.

Carlos Vogt

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